Geral / 1 de agosto de 2018

Reforma tributária e Mercosul

É pública e notória a complexidade do nosso sistema tributário pois, de um lado, a Constituição Federal contemplou três entidades políticas tributantes com impostos privativos, de sorte a assegurar o princípio federativo e, de outro lado, contrastando com esse mesmo princípio instituiu o complicado e dispendioso mecanismo de participação dos Estados, DF e Municípios no produto de arrecadação dos impostos da União e participação dos Municípios no produto de arrecadação de impostos estaduais. Tudo poderia ser resolvido com a atribuição de competência impositiva a cada entidade política na exata proporção dos respectivos encargos, constitucionalmente atribuídos. Proposta nesse sentido não faltou. Não pegou e nem vai colar por ser muito simples e racional.

       Note-se que o Governo Federal enviou ao Congresso Nacional, há quase três anos, uma proposta de reforma tributária e, segundo informações prestadas pelo Senador ANTONIO CARLOS MAGALHÃES, em entrevista concedida ao Programa Roda Viva da TV Cultura de 28/06/99, referida proposta deverá entrar em pauta somente no início do segundo semestre deste ano, possivelmente logo após o período de férias do Poder Legislativo, o que, de certa forma, demonstra um certo desinteresse dos governantes nas mudanças pretendidas.

       Porém, uma pergunta deve ser feita: qual reforma tributária precisamos? Uma reforma constitucional tributária, ou uma reforma em nossa legislação tributária ordinária? Se constitucional, qual seu âmbito? O que mudar? O que reformar?

       De notar que a expressão – reforma tributária – pode ser entendida em três sentidos diferentes. Temos, numa primeira análise, a chamada reforma constitucional tributária ampla, aqui entendida como reforma do conteúdo constitucional referente à distribuição das competências tributárias hoje incertas no Texto Maior. Emendar a Constituição, neste sentido, significa alterar a vigente discriminação constitucional de rendas tributárias.

       Visto assim, a reforma abrangeria o núcleo do sistema tributário brasileiro, modificando o número de tributos à cargo de cada um dos entes tributantes da Federação, União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios. Teríamos, neste caso, uma reforma de base, de estrutura, afetando os fundamentos da atual discriminação. O projeto de reforma tributária proposto pelo Governo Federal, ora em tramitação no Congresso Nacional, contempla em parte este sentido, na medida em que sugere a unificação do IPI e do ICMS em um único imposto federal (o ICMS Federal), com os Estados membros recebendo um percentual, de 30%, da receita do imposto.

       Outro sentido pode ser emprestado à expressão ora em análise. Referimo-nos à possibilidade de reforma em outros dispositivos contidos no capítulo constitucional tributário, e que necessariamente não precisariam estar ali contidos. Teríamos aqui uma reforma constitucional tributária restrita, pontual.

       Um terceiro sentido que podemos emprestar à expressão sob comento diz respeito à reforma da legislação tributária ordinária nacional. É a reforma tributária infraconstitucional. Cremos mesmo que o consenso da sociedade sobre a necessidade de uma reforma tributária, ampla, corajosa, e urgente, repousa nesta ideia central: precisamos, na realidade, de uma reforma infraconstitucional. Uma vassourada na miríade de leis, decretos, decretos-lei, resoluções, portarias, instruções, etc., que infernizam a vida do contribuinte brasileiro, seja ele pessoa física ou pessoa jurídica.

       Nosso sistema tributário, no que concerne à legislação hoje existente, é iníquo, complexo, sem equidade, provocando distorções e elevação dos preços. Não é segredo para ninguém que o mesmo, tal como está hoje dimensionado, inibe a atividade econômica, pois nossa legislação tributária (e não nossa Constituição Federal), é irracional. Todavia, o ponto central da discussão que tramita no Congresso Nacional é no sentido de realizar uma profunda cirurgia no texto constitucional, especialmente no capítulo pertinente ao sistema tributário nacional, alterando a atual discriminação de rendas tributárias, criando um imposto federal sobre as operações de circulação de mercadorias – o ICMS Federal -, instituindo alguns impostos especiais, além de promover outras modificações na Carta Magna de 1988.

OBJETIVOS IMEDIATOS DA REFORMA TRIBUTÁRIA

        Feitas as observações introdutórias, sintetizemos as metas básicas desse programa:

  • baratear a produção, os investimentos e as exportações;
  • evitar a tributação cumulativa (Cofins e PIS-Pasep, etc.);
  • garantir isonomia tributária entre o produto nacional e o importado;
  • diminuir incertezas decorrentes da concorrência desleal;
  • aumentar a participação dos tributos não declaratórios;
  • reduzir o custo de geração de empregos;
  • simplificar o sistema tributário reduzindo o número de tributos e simplificação e harmonização nacional das normas legais;
  • diminuir o espaço da sonegação e da elisão, distribuindo melhor a carga fiscal para reduzir alíquotas para quem paga regularmente seus tributos;
  • diminuir a tributação sobre os produtos da cesta básica;
  • harmonizar as práticas brasileiras com as melhores regras internacionais.

        A reforma tributária deve beneficiar duplamente o trabalhador. Além dos benefícios de um crescimento maior, é preciso diminuir o custo de contratação. A folha de pagamentos como base de tributação deve se restringir à contribuição previdenciária e ao FGTS, que é uma forma individualizada de poupança preventiva.

        Uma das principais causas de perda de arrecadação e sobrecarga de tributos sobre poucos é a chamada elisão fiscal. Associada, muitas vezes, a contestações judiciais, ela corresponde ao não pagamento de tributos pela exploração de lacunas legais ou pela adoção de procedimentos amparados em interpretações jurídicas extremamente elaboradas, de normas legais implícitas ou ambíguas.

        A simplificação tributária facilita a administração do sistema e beneficia a todos. O contribuinte ganha com a redução dos custos administrativos e passa a lidar com menos tributos.

TRIBUTOS QUE DEVEM SER EXTINTOS

        Para que os objetivos imediatos da Reforma possam ser atingidos com eficácia, devem ser substituídos os seguintes tributos:

  • IPI;
  • ICMS, no formato atual;
  • ISS;
  • PIS-Pasep;
  • Cofins;
  • Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL);
  • Contribuição salário-educação
  • Contribuições para o Sistema S (Sesi, Senac, etc.).

        Para substituir esse conjunto de tributos, que arrecadaram em 1998 cerca de 121,6 bilhões de reais, teremos um sistema simplificado de recolhimento, sobretudo na esfera do consumo, que atenda os objetivos acima indicados. Para tanto, é proposto um sistema baseado em três tributos, quais sejam:

  • IVA, Imposto sobre o Valor Agregado (Adicionado);
  • Contribuição Social Geral, que poderá ser um adicional do IVA (não cumulativa, incidente nas importações e não incidente nas exportações);
  • IVV, Imposto de Vendas a Varejo na competência municipal, que substitua o ISS, com alíquota restrita a 4%.

IVA – IMPOSTO SOBRE VALOR AGREGADO (ADICIONADO)

       Dentre as modificações sugeridas, discute-se sobre a conveniência da criação do Imposto sobre Valor Agregado – IVA – no Brasil. Trata-se de uma questão que merece uma reflexão mais aprofundada, pois diz respeito à instituição de um imposto único sobre o consumo, tal como já existente na União Europeia. Reside aqui a única possibilidade de alteração da ordem constitucional, consequência da necessária e irreversível formação do Mercosul.

       Nossos parceiros do Mercosul já instituíram o IVA em seus sistemas tributários. Uma particularidade é que este imposto, com a mesma denominação, vem merecendo um tratamento de certa forma diferenciado nos três países. Se todos adotam o princípio geral contido igualmente no IPI e no ICMS, o chamado princípio da não-cumulatividade, ou sistema de créditos, é fato sabido, entretanto, que a política de alíquotas, de isenções, e de outros benefícios fiscais, reduções, etc., e tudo o que diz respeito à administração do imposto, segue uma linha nacional, sem qualquer harmonia regional. Assim, podemos afirmar que se têm três IVAs, os três em desacordo entre si.

       Importante asseverar, dentre outros problemas levantados por EDISON CARLOS FERNANDES, que o IVA de Argentina, Paraguai e Uruguai é um imposto de tipo consumo, que permite a constituição de créditos fiscais quer pela compra e venda de bens, quer pela prestação de serviços. Já o ICMS brasileiro adota a estrutura de IVA tipo produto que, inobstante da mesma forma, isto é, não cumulativo, apenas proporciona créditos fiscais às atividades inseridas dentro de seu campo de incidência, donde a prestação de serviços em geral, é tributada pelo ISS.

       Quanto ao campo de incidência, também há diferença, pois os IVAs paraguaio e uruguaio incluem os bens incorpóreos, o que não ocorre com o IVA argentino e o ICMS/ISSQN brasileiro. Além do mais, a compra e venda, para efeitos de tributação ao consumo, é tratada conceitualmente diferentemente nos quatro países membros do Mercosul.

       Já o sistema de créditos e débitos, inobstante serem utilizados por todos os signatários do Mercosul, divergem na medida em que na Argentina, Paraguai e Uruguai todas as operações de consumo proporcionam créditos fiscais, mas somente as operações efetivamente realizadas. No Brasil, apenas constitui crédito tributário as operações submetidas ao ICMS, porém, existe a figura do crédito presumido.

       Os três países levam, entretanto, uma vantagem sobre o Brasil: é que já possuem a estrutura montada para uma futura harmonização da tributação sobre o consumo. Nosso sistema, neste plano, está ainda incipiente. Se queremos criar realmente um mercado comum com nossos vizinhos do Sul, é tarefa urgente pensarmos numa tributação igualmente comum, pelo menos harmonizada, com alíquotas senão iguais, próximas, para que não haja privilégios fiscais para os agentes econômicos, uns em relação aos outros.

        A base fundamental do novo sistema tributário, então, deve ser um novo imposto sobre valor agregado para substituir o ICMS e o IPI, impostos sobre valor adicionado parciais, bem como o ISS, que é um imposto cumulativo. Suas principais características são:

  • não cumulativo;
  • partilhado entre União e Estados, ou seja, será composto de duas alíquotas, uma federal e outra estadual;
  • os Municípios terão direito a uma parcela da arrecadação própria dos Estados, a exemplo do que vem ocorrendo com o ICMS;
  • terá arrecadação federal e estadual; – legislação será federal, anulando 27 regulamentos estaduais;
  • base ampla, incluindo todos os serviços;
  • terá alíquota seletiva e uniforme nacionalmente, por grupos de produtos e serviços;
  • obedecerá o princípio da tributação no destino (mas cobrado na origem);
  • não incidirá sobre exportações; – incidirá sobre importações.

        Seria mais simples e, possivelmente, mais apropriado que o IVA não só tivesse legislação federal, como também fosse administrado nacionalmente. A tradição brasileira, contudo, ainda não criou uma relação de cooperação e confiança que facilite esse formato. Por esta razão, seria mais adequado trabalhar por um IVA regulado por legislação federal, mas cobrado através de duas alíquotas, uma federal, outra estadual.

        A substituição de 27 legislações estaduais relativas ao ICMS (algumas delas com mais de 1.000 artigos), por uma única legislação federal, simplificará e racionalizará o sistema tributário.

        A uniformização nacional e seletiva evitará diferenças de alíquotas para um mesmo produto. Sempre que for significativa a diferença entre alíquotas internas e interestaduais haverá espaço para a prática de irregularidades.

        Uma das principais mudanças que a reforma tributária deve promover é a adoção do chamado princípio da tributação no destino no regime de tributação do IVA.

        O beneficiário do recurso recolhido será o Estado onde se localiza o novo proprietário da mercadoria ou o destinatário do serviço prestado. Mas, para dificultar a sonegação, é preferível que a cobrança continue sendo feita no local da produção.

        A tributação na origem não é compatível com uma economia que pretenda ser exportadora. Além disso, há o problema da guerra fiscal. Esse recurso prejudica seriamente a capacidade de crescimento da economia brasileira. Se um investidor pensa em instalar ou ampliar um negócio num Estado X, ele precisa avaliar o que pode vir a acontecer nos outros 26 estados durante o período relevante para o retorno de seu capital.

       Caso acredite que poderá surgir um novo concorrente que venha a conseguir vantagem tributária específica e especial, ele poderá desistir do investimento por temer a perda de mercado no futuro. A vantagem tributária que alguma empresa concorrente venha a conseguir vai habilitá-la a praticar preços tão menores que os do possível investidor, a ponto de alijá-lo do mercado.

        Este tipo de concorrência desleal potencial, implícito em nosso sistema tributário, precisa ser extirpado para que a economia brasileira possa voltar a crescer de maneira forte e sustentável. Se a distribuição dos recursos obtidos através do IVA se der segundo localização do consumo, é evidente que passará a ser menos importante a definição do local onde a produção é realizada.

        A transição para o regime de tributação no destino beneficiará a todos, a médio e longo prazo. Mas, a curto prazo, pode criar desequilíbrios financeiros.

        Os Estados que hoje mais produzem que consomem poderão ter perdas na transição.      No caso de São Paulo, por exemplo, segundo a Secretaria da Fazenda, detecta-se uma perda potencial de cerca de 16%, com a mudança.

        Assim, é necessário introduzir o regime gradualmente, adotando, ao mesmo tempo, um sistema de garantia de receitas para esses Estados. Propomos um período de transição de 4 anos.

        Quanto ao esquema de garantia de receita, tem-se pelo menos cinco alternativas possíveis, não igualmente desejáveis:

  • mudança nos critérios de partilha do FPE, Fundo de Participação dos Estados;
  • criação de um fundo de equalização com base em adicional de IVA;
  • adicional de imposto de renda na competência estadual;
  • imposto de venda a varejo na competência estadual;
  • margem de tributação na alíquota estadual do IVA.

        A primeira alternativa é a única que pode conciliar a transição para o regime de tributação no destino sem que haja, necessariamente, acréscimo na carga tributária global. A segunda, faz com que o acréscimo seja compartilhado por todos. As três últimas alternativas “c”, “d” e “e” concentram o acréscimo nos próprios Estados que perdem arrecadação.

        A primeira é a mais adequada, tecnicamente. No Brasil os sistemas de tributação de renda e consumo desempenham um papel complementar quanto aos benefícios dos regimes de tributação e distribuição dos seus resultados.

        O sistema de distribuição dos recursos obtidos conhecido como FPE, compensa os Estados que mais consomem que produzem. Assim, é natural que se avalie a possibilidade de rever os critérios de partilha desse Fundo. Isso não significaria perda para os Estados consumidores. O que eles ganhariam a mais na tributação do consumo seria abatido no recebimento do FPE.

        Ainda que, tecnicamente, seja o arranjo mais correto, é inegável a dificuldade política, diante da alegação de que tal procedimento “prejudicaria” as regiões mais pobres. Sendo assim, ainda que seja necessário lutar por esta alternativa que nos parece a mais correta, convém examinar as demais.

        A segunda, criação de um adicional do IVA com o fim específico de prover recursos para um fundo de equalização (sugestão do Ministério da Fazenda), tem outra dificuldade política. Os Estados que perderiam, rejeitam a idéia de ter suas finanças dependentes de um fundo de equalização. Por duas razões:

  • sendo este fundo federal, os Estados ficam inseguros com relação à administração dos recursos e repasses que, eventualmente, poderiam vir a ser retidos por alguma razão;
  • insegurança sobre como, no futuro, os legisladores virão a tratar tal fundo, ou seja, eventuais mudanças de critérios sobre a repartição de tais recursos recolhidos nacionalmente.

        Face às dificuldades políticas da primeira e melhor alternativa e à rejeição dos Estados produtores com relação à segunda alternativa, resta-nos examinar as três seguintes.

        Elas têm em comum o fato de que a garantia de receita do Estado se dará por aumento dos tributos dos contribuintes do próprio Estado. O que varia é a forma de tributação.

        Das três, a mais apropriada é a última. Em primeiro lugar, porque não é adequado usar o instrumento da tributação da renda para compensar problemas provocados pela troca de regimes de tributação no consumo. Em segundo lugar, será melhor deixar o IVV para a competência municipal. Além do mais, os administradores estaduais, se tiverem que aumentar a tributação no consumo, preferem fazê-lo ao longo da cadeia produtiva.

        O inconveniente, além do aumento da tributação, é que ela impediria a completa uniformização nacional de alíquotas para um mesmo produto.

        Contudo, estabelecida uma “banda tributária” de 20%, é possível que os efeitos negativos sejam mínimos. Caso a alíquota estadual de um produto venha a ser de 10%, permitir-se-ia a cobrança de uma alíquota de até 12%.